As mulheres que defenderam as “bruxas” do norte de Gana: O papel da filantropia comunitária em desafiar o estigma e a discriminação
14 Jun 2022
Em 2020, uma mulher de 90 anos chamada Madam Denteh foi linchada publicamente até a morte na região de Savannah, em Gana, após ser acusada de bruxaria. O vídeo do linchamento viralizou e atraiu investigações policiais e de segurança nacional, resultando na prisão de alguns dos criminosos. Como em muitas partes do mundo, a crença na bruxaria e na feitiçaria ainda existe em Gana, onde as acusações sobre essas práticas são seguidas de estigma e discriminação social. Embora homens também tenham sido acusados de bruxaria, são as mulheres que passam, desproporcionalmente, por esse tipo de sofrimento. Em alguns casos, após serem acusadas, elas são atacadas e assassinadas.
Os “campos de bruxas”, locais isolados para onde as mulheres acusadas de feitiçaria são levadas e detidas contra sua vontade, ainda existem hoje em Gana, especificamente na região norte, onde a pobreza é generalizada em comparação a outras áreas do país. Esses campos são lugares onde se acredita que os espíritos malignos possam ser exorcizados por um líder espiritual (conhecido como Tindana). Em 2020, havia quatro campos de bruxas em Gana: Gambaga, Kukuo, Gnani e Kpantiga, abrigando aproximadamente 277 mulheres e 250 crianças. O padrão de vida nesses locais é de pobreza, com acesso limitado a moradia, água e saneamento. O fenômeno dos campos de bruxas no norte de Gana existe desde os tempos pré-coloniais e, com o aumento da cobertura da mídia nos últimos anos, a situação ganhou exposição e se tornaram públicos os relatos de mulheres mais idosas sendo acusadas de usar bruxaria para provocar doenças, miséria e calamidades.
As “detentas” são quase sempre submetidas a abusos que incluem agressões físicas, humilhação pública, destruição de propriedade e ostracismo. Em uma comunidade onde muitas vezes se espera que as mulheres estejam em total submissão a seus homens, um relatório de 2008 da Action Aid mostrou que em um dos campos “– Kukuo – mais de 70% das moradoras foram acusadas de bruxaria e banidas após o falecimento de seus cônjuges. Em uma sociedade patriarcal, uma mulher sem a proteção de um pai, marido ou, às vezes, de um irmão, é extremamente suscetível a ser rotulada de bruxa. A pesquisa também descobriu que quase um terço das mulheres no campo de Kukuo não estavam envolvidas em nenhuma forma de atividade econômica antes de serem banidas para lá. Isso sugere que eram vistas como ‘inúteis’ para sua comunidade”. Existe uma alta correlação entre a percepção de que as mulheres não contribuem para lidar com as necessidades econômicas do lar e as alegações de bruxaria.
Desde 2017, a STAR Ghana Foundation colabora com a Songtaba, uma organização local que passou os últimos dez anos capacitando e apoiando mulheres e crianças da região norte de Gana para trabalhar em prol da proteção contra violência de gênero. Esta colaboração contribuiu para a formulação de quatro estatutos distritais que estabelecem tribunais para resolver conflitos e violência associados a acusações de bruxaria.
No início da pandemia da Covid-19, como muitas comunidades dependiam umas das outras para prover redes de segurança social, as mulheres acusadas como “bruxas” enfrentavam um risco ainda maior de marginalização, sendo o ostracismo uma reação comum de famílias e comunidades. Como resposta a isso, a STAR Ghana Foundation apoiou a Songtaba na realização de pesquisas rápidas sobre o estado da proteção social para supostas bruxas; isso levou a uma expansão do apoio às mulheres e de seu cadastro no programa do governo Livelihood Empowerment Against Poverty (LEAP) (que oferece formação para obtenção de meios de subsistência contra a pobreza) e no National Health Insurance (NHIS), o seguro nacional de saúde de Gana. No entanto, mesmo com essas medidas, as acusações de bruxaria continuaram com mais mulheres sendo enviadas para os campos de bruxas.
Em 2021, por meio de um programa conjunto chamado Innovation for Localization (ou Inovação para Localização), realizado em parceria com o GFCF, a NEAR Network, Save the Children Dinamarca e a West Africa Civil Society Institute, a STAR Ghana Foundation embarcou em uma agenda ambiciosa para mobilizar recursos locais nas comunidades para apoiar as mulheres que vivem nos campos. Dado que as acusações de bruxaria vêm das mesmas comunidades de origem das acusadas, inicialmente, a expectativa era de que a resposta dessas comunidades à mobilização de recursos para apoiá-las não traria muitos resultados positivos. No entanto, logo percebemos que havia uma disposição das comunidades, principalmente de mulheres, que doavam itens materiais – roupas, alimentos e detergentes. À medida que doavam, elas se engajavam mais ativamente com as questões e se conscientizavam da necessidade de se tornarem agentes de mudança para os direitos das mulheres. Os jovens se voluntariaram para percorrer as comunidades e arrecadar fundos em apoio às bruxas acusadas, e obtiveram êxito em sua missão. A facilitadora de tudo isso foi a parceira da fundação no país, Songtaba, uma organização com forte capital social presente nas comunidades. “Songtaba” é uma palavra no dialeto local que significa “ajudar uns aos outros”.
O que aprendemos é a prova de que as parcerias com organizações de base local são um estímulo ao engajamento pois essas instituições desfrutam de níveis mais profundos de confiança de suas comunidades, o que facilita o avanço de novos conceitos e ideias, particularmente aqueles que mudam mentalidades.
Antes do início da mobilização de recursos, jovens influentes assumiram o papel de defensores e mobilizadores voluntários. Eles discutiram os perigos das acusações de bruxaria e dos campos através de programas de rádio e durbars (eventos públicos para reacender os laços e a unidade da comunidade, geralmente envolvendo música e dança culturais). Em quatro meses de projeto a equipe recebeu uma série de contribuições significativas da comunidade, tanto em produtos e materiais como em dinheiro, para melhorar as condições de vida das mulheres acusadas de bruxaria e para lutar por seus direitos. A filantropia comunitária estava se desenrolando diante de nossos olhos num lugar em que pensávamos ser improvável que ela poderia ocorrer.
O que aconteceu no norte de Gana é prova de que as próprias comunidades podem ser também financiadoras ativas para o trabalho local de defesa de direitos humanos, e que a filantropia comunitária pode ser usada para abordar questões de discriminação e de garantia de direitos no longo prazo. Este foi o objetivo do projeto Inovação para Localização, ou seja, usar os recursos locais como ponto de entrada para a ampliar as capacidades das próprias comunidades e para que elas, como coinvestidoras, possam desafiar práticas nocivas enquanto adotam novos comportamentos para a proteção de populações vulneráveis e a garantia dos direitos das mulheres.
Eunice Agbenyadzi é Gerente de Programas e Feruzah Salisu é Coordenadora de Programas da STAR Ghana Foundation. Lamnatu Adam é Diretora Executiva da Songtaba.