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¿Quais caminhos a filantropia brasileira e latino-americana deveríam seguir perante a crise?

29 May 2025

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Em meio a uma onda global de movimentos de extrema-direita e conservadores, as proteções socioambientais e os direitos humanos estão enfrentando retrocessos sem precedentes. No Brasil e em outros países, essa mudança política está impulsionando uma volta atrás no campo do acesso à direitos arduamente conquistados, intensificando ataques a grupos marginalizados, criminalizando organizações da sociedade civil, encolhendo o espaço cívico e provocando uma queda acentuada no financiamento internacional para esforços de advocacy e justiça social.

 

Graciela Hopstein, a 2024 / 2025 #ShiftThePower Fellow

Cortes de financiamento à ajuda social e humanitária colocaram as organizações em uma situação crítica, uma vez que as medidas tomadas imediatamente após a posse do presidente Trump interromperam ou congelaram parcial ou totalmente as operações de organismos multilaterais como a OMS (Organização Mundial da Saúde), UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas) e até mesmo a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional). Isso resultou na retirada dos Estados Unidos de vários acordos internacionais, incluindo tratados multilaterais como o Acordo de Paris sobre mudanças climáticas.

Não sabemos ao certo qual será o impacto concreto dessas medidas nos contextos brasileiro, latino-americano e do Sul Global, mas o financiamento para a sociedade civil provavelmente nunca será o mesmo. Cortes contínuos resultaram em uma redução de quase 75 bilhões de dólares.[1] A suspensão da cooperação internacional dos EUA resultou no fechamento de mais de 60 escritórios globais da USAID e na descontinuação de milhares de projetos humanitários — mais de 5.000 subsídios e contratos foram cancelados, além de demissões em massa de funcionários —, criando um vácuo na ajuda ao desenvolvimento em regiões historicamente dependentes de recursos internacionais, como a África Subsaariana, a América Latina e a Ásia. De acordo com uma pesquisa realizada pela CIVICUS, as áreas mais afetadas incluem saúde, compromisso cívico, direitos humanos, ajuda humanitárias, desenvolvimento económico, educação, advocacy, governança e equidade de género.

Uma pesquisa conduzida por SITAWI revelou que a lacuna de financiamento estimada para o Brasil supera os 200 milhões de dólares.[2] Para as 37 organizações que responderam[3] (que dependem direta ou indiretamente desses recursos), esta fonte de financiamento representa 34% do orçamento de 2025. Certamente, as pequenas organizações são as mais afetadas, uma vez que mais de 50% de seus orçamentos anuais podem ser comprometidos, aumentando o risco de fechamento permanente e até mesmo a interrupção de suas operações, além de colocar em risco a continuidade de 80% de seus funcionários.

Considerando o contexto de precariedade e fragilidade em relação à sustentabilidade política e financeira em que as organizações da sociedade civil brasileira historicamente operaram, a pesquisa da SITAWI revela que apenas 23% estavam preparadas para um corte abrupto de financiamento e quase metade (47%) possui reservas financeiras para um máximo de três meses. Com base no cenário apresentado, é possível afirmar que, considerando a dependência da sociedade civil brasileira em relação aos recursos internacionais, a situação está tomando contornos dramáticos, uma vez que a crise global de financiamento forçará as ONGs a diversificarem suas estratégias de mobilização de recursos, buscarem novos parceiros — já que haverá uma competição maior por menos fundos — e reajustarem suas agendas e modos de operação de acordo com os interesses estratégicos dos doadores. E a situação se tornará ainda mais crítica, dado o momento de fragilidade democrática que estamos vivendo com a ascensão de governos conservadores e autoritários, a regressão no campo dos direitos e liberdades fundamentais, a restrição dos espaços cívicos, a criminalização do protesto e o avanço da deslegitimação do papel das OSCs.

 

Crises por todas partes. Quais são as possíveis estratégias para garantir a sustentabilidade política e financeira da sociedade civil em um contexto complexo e desafiador?

Certamente, fortalecer o financiamento local e a filantropia comunitária, incluindo estratégias de investimento social privado, deve ser uma das prioridades. No caso da filantropia brasileira, embora conte com uma infraestrutura desenvolvida e diversificada, historicamente não conseguiu atender às necessidades de financiamento da sociedade civil local. Embora as fundações corporativas e familiares invistam significativamente no campo social —R$ 4,8 bilhões em 2022, de acordo com o Censo GIFE— esses recursos são, na sua maior parte, alocados para o desenvolvimento de seus próprios programas e muito menos para apoiar organizações da sociedade civil (cerca de R$ 1,8 bilhão) com as agendas de justiça social e direitos humanos, defesa de direitos, cultura de paz e democracia; o desenvolvimento institucional das OSCs e movimentos sociais recebem as menores doações. É importante destacar aqui o papel da filantropia independente brasileira[4], integrada por fundos e fundações comunitárias, 18 dos quais fazem parte da Rede Comuá, no financiamento da sociedade civil. Em tal sentido, a maioría deles (74%) doa a organizações de base comunitária, movimentos sociais e coletivos (formais e informais) liderados por minorias polítcas (mulheres, pessoas indígenas, negras e da comunidade LGBTIQ+ etc.). No entanto, essa filantropia também sofrerá os impactos da crise de financiamento, incluindo a comprometimento do fluxo e volume de doações transferidas até agora (em 2022 e 2023, esses fundos independentes doaram quase 400 milhões de reais para OSCs e movimentos sociais apenas para iniciativas de justiça climática).

Com base nesta análise preliminar, o cenário político e de financiamento se apresenta como desafiador a curto, médio e longo prazo. Em primeiro lugar, é surpreendente notar a falta de discussões sobre a urgência dessa agenda nos campos da sociedade civil brasileira e da filantropia. Em segundo lugar, devemos estar atentos às narrativas que “justificam” os cortes e observar como setores conservadores têm se apropriado de conceitos como localização e descolonização, distorcendo significados e sua relevância.[5]

Certamente, essa situação exigirá que soluções criativas e ousadas sejam pensadas tanto no campo político quanto no âmbito da filantropia e da cooperação internacional. Outra das ações prioritárias deve ser a criação de novos espaços de articulação global —entendidos como fóruns permanentes de debate envolvendo redes de sociedade civil globais, regionais e locais, além de filantropia internacional— com o objetivo de desenhar modelos de financiamento alternativos que favoreçam a autonomia das OSCs e o impacto coletivo. Iniciativas como Wake up Philanthropy, Possible Now e Stand with Civil Society devem ser comprendidas como ações de resistência coletivas e de incidência, que ao mesmo tempo implicam um chamado à ação, e a redefinição de narrativas também se convertiram em estratégias fundamentais. Na América Latina, também há iniciativas em andamento, como a Red Colaborar e Reimaginando el futuro de la sociedad civil, conduzida pela RACI, entre outras.

Como um bolsista do programa #ShiftThePower (coorte 2025), meu compromisso é analisar a conexão entre democracia e filantropia comunitária, compreendida como uma estratégica para o fortalecimento da sociedade civil, uma agenda que se torna urgente e prioritaria na crise política e de financiamento que estamos sofrendo. Considerando que a democracia representativa e os modelos de desenvolvimento e governança estabelecidos no período pós-guerra estão passando por uma crise estrutural e multifacetada, o fortalecimento da sociedade civil (comunidades e movimentos sociais) permanece uma ação fundamental e estratégica para consolidar a democracia e construir uma sociedade mais igualitária, justa e inclusiva.

 

Graciela Hopstein é mestre em educação (UFF) e doutora em Política Social (UFRJ). É consultora, professora e pesquisadora no campo social. Foi a diretora executiva do Instituto Rio (2012-2016) e da Rede Comuá (2017-2024). Graciela é atualmente fellow do Programa Shift the Power (coorte 2025).

 

[1]Esses cortes também envolvem os acordos de cooperação internacional da Alemanha; França; Reino Unido; Suíça; e Países Baixos (Holanda e Bélgica).

[2]Valor estimado dos recursos da USAID e de outras agências dos EUA que deixarão de chegar ao Brasil.

[3]De acordo com a SITAWI, Finanças do Bem, “Embora esta amostra não represente o setor como um todo, ela reflete uma porção significativamente impactada que enfrenta desafios urgentes e aponta caminhos para o futuro”.

[4]Estas são organizações que mobilizam recursos de diversas fontes para doar à sociedade civil.

[5] Em caso de localização, do ponto de vista do financiamento internacional, é uma estratégia que pretende transferir responsabilidades para atores locais (públicos e privados) para lidar com a crise. Por sua vez, o conceito de desconstrução também é enquadrado nesta mesma linha, reforçando o argumento de que, com base nos cortes de financiamento, o financiamento internacional está alinhado com as demandas históricas do Sul Global, na medida em que, para esses setores, a crise é uma oportunidade para que os países busquem suas próprias soluções para problemas locais, de uma maneira “independente”, sem a intervenção das grandes potências econômicas.

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