Existe um outro caminho: Reimagindo o desenvolvimento em Moçambique
13 Oct 2022
Contexto
Trabalhar na sociedade civil em Moçambique é um desafio. Pela classificação do CIVICUS Monitor, o país é considerado como uma nação sob repressão e a província de Cabo Delgado ao norte tem vivido uma insurgência armada que desde outubro de 2017 vem ceifando milhares de vidas e deslocando cerca de metade da população da região.
O consequente declínio da liberdade de expressão, os ataques a jornalistas e as restrições cada vez mais rígidas às organizações da sociedade civil (OSCs) são elementos que se somam para dificultar a vida do programa Giving for Change (ou “Doar para Mudar”). Para compreender melhor o desenvolvimento das ações em Moçambique, Ese Emerhi (Global Network Weaver, ou a “tecelã da rede global” do GFCF) e Barry Knight (consultor do GFCF) conversaram com Milagre Nuvunga, Diretora Executiva da Fundação Micaia, e Andrew Kingman, Diretor Geral da Eco Micaia. O resultado da convera é apresentado a seguir e nos ajuda a entender os esforços empreendidos na construção da filantropia comunitária no país.
Programa Giving for Change
Barry Knight (BK): Como estão encarando os desafios do programa?
Milagre Nuvunga (MN): Sabíamos que seria difícil construir um movimento envolvente para o desenvolvimento da filantropia comunitária. Grande parte da sociedade civil se adaptou a uma dinâmica social profundamente estruturada de cima para baixo, construída a partir de um sistema de recompensas, burocracia excessiva e formalidade, no qual o paradigma de financiamento dominante enfraquece lideranças locais e qualquer senso de independência. Não tínhamos esperança de que as OSCs já estabelecidas fossem adotar com rapidez um processo em que seriam desafiadas por comunidades e por um público mais confiante e com recursos próprios.
BK: Quais os avanços na construção da filantropia comunitária?
Andrew Kingman (AK): Tivemos que reformular o programa à medida que fomos avançando; as linhas gerais do projeto original ainda estão lá, mas nossas táticas mudaram. Felizmente, o programa Giving for Change é flexível e podemos ajustá-lo quando necessário.
O orçamento inicial para o programa foi organizado em torno de “eventos” – com recursos para hospedagem, transporte e alimentação, por exemplo – mas vimos que essa não é a melhor forma de reunir as pessoas e aprender como uma comunidade. Observamos que a estratégia de eventos serve para reforçar sistemas de recompensa e, quando mudamos a abordagem em relação ao orçamento descobrimos que as pessoas passaram a contribuir diretamente para as formações, oferecendo espaço para reuniões, dedicando seu tempo e experiência e oferecendo outros tipos de apoio.
Temos trabalhado com a juventude, oferecendo apoio a 63 ativistas para se tornarem instrutores e facilitadores na mobilização de recursos, defesa de direitos, e atividade de lobby. Nós os chamamos de “agentes de filantropia comunitária” (AFC). Esperamos que até o final do ano 150 jovens passem pela formação, e esse é um resultado direto do programa Giving for Change.
O trabalho nas comunidades
BK: Como seus parceiros e as comunidades com as quais vocês trabalham reagem ao programa Giving for Change?
MN: Ah… (suspirando)… conseguimos perceber toda a complexidade do projeto ao operar em Moçambique. É difícil trazer algo novo para pessoas que estão acostumadas a sempre fazer as coisas de uma mesma maneira.
Há uma diferença na recepção ao programa nos dois locais onde estamos trabalhando – Maputo e Chimoio. Em Chimoio, por ser um ambiente urbano menor no coração de uma província rural onde as dinâmicas de poder não são tão pronunciadas, as pessoas estão ansiosas para mudar as coisas. Entretanto, há menos espaço para atuar no aprimoramento do trabalho de filantropia. Já Maputo é uma cidade grande, com uma estrutura tradicional de OSCs. Lá notamos uma maior resistência das pessoas em trabalhar em conjunto; a preferência é atuar em separado, sozinhas.
AK: Os desafios que enfrentamos não são tão drasticamente diferentes dos encontrados em outros programas, mas em nosso contexto essa é a primeira vez que trabalhamos em um nível mais nacional. As OSCs em comunidades menores como Chimoio são pobres e, portanto, estão mais abertas a experimentar coisas novas. Em Maputo, as OSCs tendem a não estar realmente interessadas no programa. Estão muito enraizadas nos incentivos em torno do sistema de recompensas do trabalho tradicional de desenvolvimento – que se limita a estimular uma abordagem de cuidar primeiro de seus próprios interesses. Nesse sentido, estamos realmente nadando contra a corrente com o programa Giving for Change; precisamos primeiro construir esse movimento e então torcer para que os demais atores se juntem a ele mais tarde.
BK: Então, o que está funcionando bem no programa?
MN: Uma importante história de sucesso é o trabalho que estamos fazendo com profissionais do sexo. Elas conseguiram romper as barreiras morais em torno de sua atividade e dialogar com um público mais amplo sobre questões maiores, como saúde e violência; isso tem atraído um grupo diversificado de partes interessadas dispostas a apoiar. Por exemplo, organizações de direitos humanos entraram em cena para dar suporte a campanhas de defesa de direitos e mobilização de recursos. O setor privado está disposto a oferecer oportunidades de desenvolvimento de negócios em diferentes áreas. Órgãos de governo nas áreas de saúde e ação social estão dispostos a ajudar e rever a sua relação com profissionais do sexo, de forma que consigam acessar os serviços públicos de que precisam. Outros grupos marginalizados, como a comunidade das pessoas cegas e LGBTQ+, estão usando táticas semelhantes para deixar a condição de estigmatizados e assumir o papel de agentes de mudança e defensores de avanços sociais.
BK: Isso parece mesmo um avanço! Que oportunidades estão se abrindo por meio do programa?
AK: Quando fizemos nossos primeiros treinamentos sobre defesa de direitos, percebemos que havia uma oportunidade de transformar isso em algo maior. Os AFC estão apoiando organizações locais da sociedade civil como parte do programa de matching grants (o programa faz uma doação equivalente aos recursos mobilizados na própria comunidade), uma iniciativa desenhada para estimular a filantropia comunitária ao invés de simplesmente esperar que um doador ou projeto apareça e faça tudo acontecer.
Nossa agenda de pesquisa visa desenvolver isso. Está centrada em três temas: 1) Atitudes em relação à doação e possibilidades de mudança, especialmente durante o ciclone Idai que fez com que milhares de pessoas fossem desalojadas; 2) Tradições de doação – histórias de filantropia dentro da família (e da família extensa); e 3) Incentivos fiscais para empresas em torno da filantropia corporativa.
Ese Emerhi (EE): Você falou sobre como o idioma pode ser uma barreira e um facilitador para esse tipo de trabalho. Nesse sentido, como você está definindo “filantropia comunitária”?
MN: Existem desafios em torno do uso de palavras básicas como “agency” (ou agência), por exemplo, que não existe na língua portuguesa com exatamente o mesmo sentido como no inglês. Felizmente, conseguimos nos conectar e aprender com exemplos da Rede Comuá no Brasil, sobre como eles definiram alguns desses termos em torno da filantropia comunitária. Para a maioria das pessoas, a filantropia é entendida como as grandes ações feitas por instituições ou indivíduos de alta renda, e não como ações menores e quase invisíveis que as pessoas realizam todos os dias. Queremos conversar mais sobre o “significado de doar” em vez de nos aprisionarmos a palavras específicas, ou seja, concentrar na mensagem. Entendemos que a adoção desses termos pode ser lenta e levar algum tempo e, por isso, não estamos trabalhando agora para redefinir a filantropia comunitária ou criar termos para ela.
AK: Começamos trabalhando internamente em nossa própria organização para chegar a uma compreensão do que é a filantropia comunitária. Milagre e eu temos mais experiência do que os outros membros mais jovens da equipe, então era importante para nós e para eles que pudessem receber essa formação pelo próprio programa.
BK: Qual é o futuro imediato da Fundação Micaia?
MN e AK: Bem, temos várias coisas em vista:
- O componente de matching grants (ou doações equivalentes) do programa Giving for Change é um grande passo para nós. Queremos usar essa oportunidade para atuar com diferentes equipes, aproximando os diversos trabalhos e promovendo ideias e histórias. Esperamos que isso ajude a quebrar algumas das principais diferenças entre grandes cidades como Maputo e pequenas, como Chimoio.
- Temos que testar com a comunidade de prática os modelos que desenvolvemos ao longo do tempo. Queremos explorar e fazer grandes perguntas como: o que está ou não funcionando? Como esse trabalho impactará os próximos dois anos? Como as críticas ao trabalho podem ser incorporadas na implementação do programa? A comunidade gosta desse tipo de trabalho centrado na filantropia comunitária?
- Nosso trabalho de comunicação também foi alterado para incluir agora a parceria com uma agência de mídia local em uma campanha de defesa de direitos que aumentará gradualmente a conscientização sobre a filantropia comunitária nos próximos dois anos. Esperamos incluir também o governo federal nesse trabalho.
- Também acompanharemos com a African Philanthropy Network (Rede Africana de Filantropia) o trabalho de linha de base que fizemos para o Giving for Change. A linha de base identificou algumas áreas-chave de trabalho nas quais precisamos nos concentrar, especialmente com o governo e a filantropia de gênero/feminista. Como também estamos coletando dados para dar mais visibilidade ao trabalho que as mulheres fazem na filantropia, talvez possam ser desenvolvidas estratégias-chave em torno dessa linha de trabalho.
BK: O que você precisa agora para levar a Fundação Micaia a um próximo estágio?
MN: Aprender e compartilhar exemplos de filantropia comunitária ajudaria a aprofundar nosso trabalho. Espaços como as reuniões com as demais instituições que participam do programa Giving for Change ajudam na troca de conhecimento. A reunião de parceiros em Gana também ajudou a construir conexões e interações pessoais com colegas e a quebrar o isolamento de nosso trabalho, facilitando com que as conversas com parceiros fluam e sejam mais efetivas.