Uma carta aberta às ONGs internacionais que desejam “localizar” suas operações
17 Mar 2020
O nosso apêlo é que vocês trabalhem connosco e não contra nós. Precisamos de apoio, não de competição.
Esta carta é o produto de uma discussão prolongada, acalorada, irritada e repleta de paixão que ocorreu no grupo WhatsApp #ShiftThePower (#TransferiroPoder) na semana passada. Várias pessoas do grupo foram abordadas separadamente por ONGs internacionais, que queriam aprender sobre suas experiências na captação de recursos locais e na construção de filantropia comunitária, mas de maneiras que pareciam ser ‘extrativas’. Essas interações apontam para a tendência crescente de ONGs internacionais procurarem mais recursos para preencher a lacuna de financiamento que muitas delas estão enfrentando.
5 de março de 2020
Caros ONGs internacionais:
Obrigado pelo seu interesse nos nossos países. Representamos uma grande variedade de organizações nacionais e subnacionais com base em países – principalmente no sul global – onde vocês costumam trabalhar. Provavelmente até estivemos juntos em reuniões ou fomos representados nas histórias de sucesso que vocês compartilham com os vossos apoiadores.
Agradecemos que, ao longo dos anos, muitos de vocês tenham ajudado a fornecer serviços muito necessários e a levantar questões preocupantes, como o alívio da dívida, gênero ou mudança climática, no cenário mundial.
Mas os tempos estão mudando. E vocês (corretamente) têm enfrentado várias críticas nos últimos anos – em torno da vossa legitimidade, da vossa ‘brancura’ ou do fato de que muito mais dinheiro assistencial acaba nos bolsos da sede das organizações do norte do que no sul global.
Vemos que estão tentando responder a essas críticas por meio de ‘localizar’ as vossas operações, pois fomos solicitados a nos reunirmos com os vossos altamente pagos consultores em várias ocasiões. A estratégia é bastante comum: geralmente vocês começam criando uma “organização local” com um Comitê de Gestão local. Um próximo passo que estamos vendo é que vocês entram no mundo da ‘Mobilização de Recursos Domésticos’ para angariar fundos dentro de nossos países. Esse último aspecto provavelmente se deve também ao fato de que as vossas rendas tradicionais do Norte/Oeste rico estão começando a diminuir; portanto, isso tem o bônus de reabastecer as rendas perdidas.
Na teoria, isso provavelmente parece ótimo para os vossos ouvidos: as pessoas locais de renda média realmente devem “ser donos” da sua sociedade civil, especialmente em resposta às crescentes preocupações em torno da diminuição do espaço cívico e de governos autoritários. Não podemos concordar mais com você sobre esse princípio.
Mas há coisas às quais nos opomos e temos algumas sugestões sobre como vocês podem usar a vossa força internacional para nos ajudar de maneira mais eficaz do que através dessa mal concebida agenda de localização.
O que acontece na prática é que esses esforços servem apenas para reforçar a dinâmica do poder existente e, em última análise, fechar o espaço para a sociedade civil doméstica. Isso pode ser ilustrado de maneira bem simples: uma ONG international multimilionária, com toda uma equipe de marketing, comunicação e captação de recursos, cujo orçamento do projeto para esse empreendimento provavelmente supera o orçamento anual da maioria das organizações nacionais, vem então ao sul arrecadar dinheiro ‘internamente’.
Talvez o Comitê de Gestão tenha estabelecido uma meta de aumentar 30% da renda total diretamente do sul. Isso não é um milhão de dólares adicionais, é um milhão ou mais de dólares subtraídos da sociedade civil local. E pior ainda, a maior parte desse dinheiro será desviada para custear seu próprio funcionamento interno, em vez de ser investida no local.
Tudo isso serve para nos enfraquecer localmente. Isso nos mantém em um relacionamento de mestre / servidor, implorando continuamente por doações das vossas instituições, enquanto continuamos sem financiamento próprio. Não é isso que precisamos ou queremos.
Em vez disso, veja como vocês podem ser mais úteis com o vosso investimento em captação de recursos locais: se vocês levam à sério a ‘transferência de poder’, reduzam a vossa pegada e marca institucional e usem a vossa máquina de arrecadação de fundos para ajudar as organizações de base a criar as estruturas para arrecadar fundos por si mesmas e sustentar seus investimentos e trabalhos.
Precisamos da infraestrutura que permita que as pessoas locais angariem fundos internamente e através da diáspora, em vez de competir com as grandes ONGs internacionais. Em última análise, é necessário fortalecer e ampliar a sociedade civil do sul, para não ser expulsa de nossas próprias comunidades e mercados.
Será que vocês precisam existir em todos os países com a vossa marca? Não. Muitas vezes existem organizações locais, como nós, que trabalham efetivamente no terreno, com melhores conexões com a comunidade local. E muitos de nós também temos as habilidades e a capacidade de tratar dos nossos problemas no cenário mundial.
Representamos uma mistura eclética de organizações, mas estamos cada vez mais unidos sob a bandeira ou hashtag de #ShiftThePower e o “Manifesto de mudança.”
O nosso apêlo é que vocês trabalhem connosco e não contra nós. Precisamos ser apoiados, sem sermos alvos de competição, e certamente sem sermos substituídos.